“Tijolinho de Egrégora”

Alguns anos atrás, um conhecido que eu apelidei de “O Ser Humano Mais Perigoso Que Eu Já Conheci” me deu um conselho: “Cuidado para não virar tijolinho de egrégora.”

O fato de que ele é/era o ser humano mais perigoso que eu, até aquele momento, tinha conhecido não impede que o conselho seja bom. E o conselho ser bom não impede ele de ser perigoso. Essa é uma das coisas mais lindas da semiótica: existem coisas Evidentes (que são e parecem ou que não são e não parecem), Falsidades (parecem mas não são) e Mistérios (não parecem, mas são).

Na época, começando os estudos, o conselho “não virar tijolinho de egrégora” dizia muito respeito ao comportamento (comum) de aderir a uma filosofia (enquanto conjunto de ideias coerentes entre si) abrindo mão da individualidade. Segundo ele, o caminho do adepto é tortuoso, pois ao mesmo tempo em que ele precisa (ou pode) se valer das egrégoras para ser “estilingado” para frente, as egrégoras tendem a absorver os indivíduos, padronizando-os.

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O conselho mencionado, num primeiro momento, parece maniqueísta. Pode se tornar tanto um “egrégoras são malvadas e querem comer indivíduos” quanto “fora do caminho solitário, como o meu, não existe salvação”. Na prática, porém, como a maior parte das coisas, existe uma razão oculta por trás que explica isso (e mais a maior parte das coisas).

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G. O. Mebes escreveu um dos livros que eu considero mais importantes para quem pretenda começar a estudar o ocultismo: Os Arcanos Maiores do Tarot. O paradoxo é que tal livro fala de tudo, menos Tarot e, por isso, quem se aproximar dele pretendendo aprender Tarot vai se decepcionar.

O livro usa os Arcanos Maiores como mote para o estudo esotérico, dissertando em cada capítulo sobre uma faceta dos Estudos. Lá se encontrará desde sugestões para a realização de projeção astral até técnicas para ocultar a assinatura energética e evitar o retorno de ataques de magia negra.

Para este Texto, o mais importante é o mote proposto para o Arcano “O Diabo”.

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Para Mebes (ou para mim, lendo Mebes) o Diabo diz respeito à “Interação com Egrégoras”: O Indivíduo, ao interagir com o Coletivo, entra em um cabo-de-guerra no qual se disputa o controle do Espírito do Indivíduo. De um lado, o Indivíduo deseja o Poder coletivamente acumulado sem perder sua própria identidade, e, de outro lado, a Coletividade deseja agregar a si mesma mais um indivíduo.

Provavelmente, o leitor, agora, começará a imaginar diversos casos de pessoas que se aproximaram de seitas radicais e aderiram “de corpo e alma” a elas. De fato os exemplos são vários e evitarei apontar dedos (inclusive porque seita é o culto do outro, nunca o próprio). Porém, é válido se ter em mente que é fácil se perceber a perda da individualidade quando se trata da aderência a uma seita radical, mas é muito mais difícil perceber isso quando a seita é tolerante. Tenham em mente, a perda da individualidade é um problema em si, independente do radicalismo ou tolerância da seita: o alcoólatra que larga o vício pela religião obteve um benefício prático inegável, mas ainda tem um problema para enfrentar perante sua egrégora.

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Passada a primeira evidência do cabo-de-guerra entre indivíduo e coletivo, Mebes sustenta uma batalha egregórica arquetípica na qual todos estão inseridos: A disputa com a Egrégora da Terra, que se rege por uma palavra central: Estabilização.

A natureza humana é dual: Terrena e Celeste. Da perspectiva Terrena, tendemos à estabilização (aderir ao que nos é confortável) e da perspectiva Celeste tendemos à Mudança (é natural do ser humano desejar o que não tem).

Sob essa perspectiva, todo ser humano estaria em eterno conflito entre estabilização e mudança, entre medo e desejo, sendo a solução desse conflito elemento central do processo mágico (e solução não é erradicação: lembrem-se de que nos Evangelhos o Cristo ascendeu aos céus com o Corpo Terreno).

“Nós somos medo e desejo, somos feitos de silêncio e som.”

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A Disputa do Diabo é um tema importantíssimo a quem pretende se iniciar em uma egrégora ou seguir uma religião. Acaba sendo importante também a pessoas que pretendem aderir a uma coletividade qualquer (sejam elas partidos políticos, nações, empresas ou times de futebol).

“E tudo tem que virar óleo pra pôr nas máquinas do Estado.”

Porém, mais importante ainda é a Disputa do Diabo para quem deseja se aventurar pela Magia Evocatória ou Invocatória, quando se estabelece, ritualisticamente, uma disputa de Vontades entre Magus e Entidade.

Os Grimoristas (talvez por necessidade de evitar a Inquisição, ou por legítima verdade) insistem que os trabalhos evocatórios devem ser feitos na Luz de Cristo. Não deixa de ser irônico que, para se proteger da Disputa do Diabo, eles se entreguem no colo da Igreja (outro Diabo).

Mebes apresenta outra proposta teórica, na qual sustenta que o ser humano encarnado na terra possui sobre as entidades imateriais a vantagem de estar em seu próprio território. Dessa forma, a evocação de uma inteligência planetária não-terrena estaria sob o controle do Magus, pois ele possui a conexão com a Terra por intermédio do próprio corpo. De tal teoria, duas consequências adviriam.

A primeira delas é que o Magista deve ter controle de si mesmo antes de pretender a Operação Evocatória. Obviamente, “controle de si mesmo” é uma expressão muito ampla e larga: todos nós estamos mais ou menos em controle da própria Vontade em momentos diversos, apenas é importante que esse controle esteja mais aflorado no momento do ritual. Daí a importância da preparação pré-ritual, com as práticas de limpeza e concentração.

A segunda consequência é que, enquanto encarnados temos algumas vantagens sobre algumas entidades (como a capacidade de gerar energia respirando, por exemplo). Essa vantagem, porém, desaparecerá cedo ou tarde (afinal, “no fim a morte triunfa porque tem paciência e sabe esperar”) e o magista terá que encarar as entidades evocadas, um ótimo motivo para manter corteses as relações entre os dois lados do véu.

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Muitos anos atrás eu escrevi que “quem não é jogador é carta ou ficha”. Foi uma conclusão em um período muito intenso, quando ficou aparente se você não está direcionando a própria vida, alguém está. Por um tempo isso foi relevante nas relações afetivas, profissionais e política. Depois restou evidente também nas relações espirituais.

A Disputa do Diabo é, talvez, mais presente na vida espiritual do que em qualquer outro local e a consciência dela deve orientar as práticas espirituais, a começar pela escolha das práticas. Crowley alertava que “Os Escravos Servirão” e o maior perigo é que o escravo sirva feliz por sequer perceber a escravidão.

O ser humano se beneficia muito da atenção à sua própria individualidade. Alguém que não consegue se controlar provavelmente será controlado por alguém, quer esse alguém seja uma igreja, um arcanjo ou um demônio. Escravos do desejo são escravos desejados.

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4 respostas para “Tijolinho de Egrégora”

  1. Douglas SIlvério diz:

    Muito bom o artigo!

  2. Barbara diz:

    Mais textos plisssss

  3. Klisóstom diz:

    Parabéns, ótimo texto!

    Uma explicação boa sobre o G. O. Mebes que eu precisava.

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